sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Conto - Gêmeas

GÊMEAS Quando eu e minha irmã gêmea nascemos foi um espanto... nós nascemos de um espanto... nós nascemos com o espanto. Éramos albinas e parecíamos mais duas criaturas alienígenas suplicando por vida terrestre: Olhos grandes e cabeças ovulares e corpos esguios diante dos olhos curiosos de meia dúzia de pessoas. A parteira assustou-se e suspirou profundamente: “Meu Deus!”. Naquela vila com pouco mais de seiscentos habitantes o fato era no mínimo incomum. Minha mãe exausta ainda conseguiu nos segurar nos braços, para depois desmaiar; “o desmaio” durou por toda sua vida. Crescemos escondidas do mundo e inocentes em relação às desgraças desse mesmo mundo. Nossos corpos mudaram sincronicamente. E nós ainda não éramos meninas desejadas. Talvez por nossa brancura, talvez por nossa feiúra, talvez por nossa estranheza... A morte de nossa mãe, era uma dor que se expressava nos olhos de meu pai. Um ódio que nos consumia por dentro em uma ardência tão corrosiva que doía. Em uma tarde quente, muito freqüente naquele lugar, meu pai trabalhava na perigosa extração de madeira. Tudo aconteceu tão de repente e ao mesmo tempo lentamente. Primeiro a motosserra roçando o tronco da árvore e fazendo chover cascalhos; depois o ranger da centenária árvore como um choro na mata; e por fim a queda de um corpo gigante que rolou...rolou...e rolou...Meu pai não esperava. O tronco veio como uma onda devastadora atingindo meu pai inteiro e por um momento ele faz parte daquele ser, agarrado ao tronco por alguns milésimos de segundo. Quando finalmente pensávamos que viveríamos nosso feliz isolamento, pois por incrível que pareça nós éramos felizes sozinhas, veio-nos a notícia: “Vocês vão morar com seu avô paterno na cidade grande”. Saímos daquela cidade sem saudade, mas com a incerteza do futuro, com medo daquela cidade grande...grande...aos nossos olhos ela, a cidade, era quase infinita. O céu escuro (mesmo sendo dia), carros e buzinas que perfuravam nossos ouvidos, e tanta fúria e frieza nas pessoas... Chegamos na casa de nosso avô, uma casa grande e velha, e por um momento esperávamos sermos recebidas por um idoso gentil e bondoso, porém, diante de nós estava um homem altivo; velho, sim, mas forte e ríspido. Baixou os óculos, não para nos ver, mas para que pudéssemos olhar os seus olhos cruéis. - Então, vocês são Clara e Clarice? São duas criaturas feias. Realmente eu devo ter sido uma pessoa muito má – não tínhamos dúvidas disso – para ter que suportar isso. Entrem. – não reagimos – O que foi? Preferem ficar aí fora? Iria me poupar muitas coisas. Entramos mais por medo do que por vontade. Sempre soube que a casa demonstra o estado de espírito das pessoas. Confirmei isso naquele exato instante. Os móveis eram velhos de uma madeira negra. O chão, apesar de limpo, espelhava uma imagem difusa, embaçada. Olhar para o chão era como cair num abismo. Hoje sei que o abismo estava nos nossos pés e o diabo à nossa frente. O velho nos conduziu pela casa sem dizer nada e sem olhar para trás, mas eu sabia que havia um sorriso medonho em seu rosto. Quando finalmente chegamos em um dos quartos da casa, finalmente ele pronunciou algumas palavras: - Aí está! Esse será o quarto de vocês? Olhamos ao redor tentando entender. Minha visão ainda não havia se acostumado com a escuridão do lugar, mas ali estava uma grande cama, provavelmente há muito tempo não usada; uma escrivaninha e um pequeno guarda-roupa e nada mais. As cortinas cerravam completamente as poucas janelas do recinto. Aquele velho tinha medo da luz. - Fiquem à vontade! Mais tarde chamo vocês para jantar. Estão com fome? - Não senhor! – Ousei responder. - Que pena! Preparei um prato especial para vocês. De qualquer forma vocês vão comer. Não quero que me acusem de deixar minhas feias netinhas sem comida. Pensar no jantar me fez tremer. - Vão tomar banho. Sinto o fedor do mato em vocês, bando de caipiras. Quando o jantar estiver pronto eu chamo. A porta se trancou com um baque forte e profundo fazendo ecoar, por alguns instantes, por todo o quarto, como um sino rouco e abafado. Sentamos no chão e pusemo-nos a chorar de nossa própria condição, da falta de sorte e da infelicidade. Não sei porque falo de infelicidade se não sei o que é felicidade. O jantar foi servido. Jantar que ele mesmo preparou. Uma carne quase crua boiando num tempero que ficou incrustado no céu da minha boca por toda a vida. Até hoje posso senti-lo, às vezes, até acho que meu paladar se resume apenas em salgado, doce, azedo e o tempero daquele fígado. Na mesa ele nos olhava mastigando aquela carne lentamente e por mais que abaixássemos os olhos era possível sentir a presença de seu olhar sobre cada movimento nosso, por mínimo que fosse. Seguramos o asco e comemos. Ousei (uma escolha infeliz, diga-se de passagem) comer avidamente na esperança que meu prato se secasse. Ele bateu com a mão espalmada sobre a mesa e disse: - Se vai comer como um bicho deve ser tratada como um bicho. Jogou meu prato no chão e me obrigou a comer ali mesmo como um cão. Agachei-me com as mãos coloquei lentamente a comida na boca, mas não sei se engoli realmente. Era como se eu apenas depositasse na minha boca. Comia como um cão. Minha irmã não se mexia. Apenas continuava comendo e tentando não cometer o mesmo erro que eu. Fomos dormir, contudo não sonhamos. Foi rápido demais para que houvesse sonho. Foi apenas um piscar de olhos. Meu avô não bateu a porta, ele a empurrou com um solavanco e puxando nossos lençóis. - Levanta suas pestinhas! Pensam que a vida é fácil? – Não, a vida não era fácil. Meu avô nos obrigou a limpar todo o quintal e depois toda a casa, aquela enorme casa. Ao final da tarde estávamos exaustas e ainda não havíamos comido nada. Também, pouco importava a comida. Nós nos alimentávamos de nós mesmas. “Somos dois seres em um só”, eu pensava. Terminado todo o trabalho entramos no quarto com a esperança de que ele dia acabasse e ao mesmo tempo com medo de que o outro começasse. Uma indecisão inexplicável e apenas sentida. Ao terminar as tarefas em que fomos obrigadas andamos lentamente com os pés, as pernas e os braços tão doloridos que não sabíamos se estávamos realmente andando ou flutuando, carregas por alguma entidade. Meu avô estava no sala de estar fumando seu cachimbo e sentado em uma poltrona iluminado apenas por um abajur, o que o deixava ainda mais medonho. - Terminaram? – Eu, que sempre tomava as atitudes, não tive forças para responder – TERMINARAM? – ele gritou. - Sim, vovô – Minha irmã falou por nós. – então, podem voltar para o chiqueiro de vocês. Até aquele momento não havia entendido porque ele falou daquela forma, talvez por estarmos acostumadas com seu tratamento. Saberíamos rapidamente o motivo. Quando chegamos à porta do quarto, ninguém ousou abri-la. Ficamos olhando para a porta com um medo terrível. Assim como eu, sei que minha irmã estava com o choro entalado na garganta. Um choro que desejava sair na tentativa de aliviar aquela dor. Queríamos chorar como crianças que éramos, mas não podíamos. Aquela placa pregada na parede, deixou-nos com mais medo ainda de entrar: “ CHIQUEIRO DAS PORQUINHAS”. Olhei para minha irmã e me vi nela, não porque éramos parecidas, mas por que éramos a mesma pessoa. Ela o espelho da minha alma, e eu o espelho de sua alma. Nós nos olhamos e lentamente abrimos a porta. Pelo quarto, toda a sujeira que havíamos limpado e guardado nas lixeiras estava espalhada por todo o quarto. Até mesmo fezes havia pelo quarto, deixando o lugar com um cheiro insuportável e totalmente inabitado. Assim vivemos por várias semanas naquela casa. Em um dia, sem explicação, surgiu uma companhia para nossa lastimável vida. Um pequeno gato que compartilhava do mesmo mundo que o nosso, claro, numa perspectiva de gato. Resolvemos cuidar do animal as escondias. Pela noite desfrutávamos da companhia um do outro e fazíamos do gato um confidente de nossas perdas e dores, as únicas coisas que possuíamos verdadeiramente. Naquela época descobrimos um pequeno gosto de felicidade, mas tão pequeno que hoje já não sei se poderia senti-lo novamente ou reconhecê-lo quando a encontrasse. - Você! – apontando pra minha irmã – O banheiro está uma nojeira. Há um fedor insuportável. Vá limpar! Minha irmã descobriria o porquê daquele fedor. Quando cheguei ao banheiro ela estava parada segurando a vassoura com tanta força que imaginei que quebraria o cabo ao meio. Pendurado por um cordão, nosso gato estava morto deixando sobre a lajota branca uma poça de sangue enegrecido. - Ah, sabia que havia deixando em algum lugar. Aqui está nosso almoço. Boa menina – bateu com a mão na cabeça de minha irmã. Ficamos imóveis. Algo inefável pesava entre nós. Tínhamos tanto o que dizer, mas era impossível expressar. O silêncio era o não-dito mais certo a ser dito naquele instante. Saímos e fomos terminar nossos deveres. Ainda era visível aquele sentimento engatado na garganta, nos sufocando, nos maltratando...que dias inglórios nós vivíamos! O dia nasceu mais horrível que nos dias anteriores. Como se o tempo expressasse nossas almas. A chuva não caia, ela chibatava o chão; chicoteava as árvores e disparava raios de gotas nas janelas da nossa casa. Demoramos a acordar e isso foi um fato estranho, pois muito cedo nosso avô nos acordava aos gritos. Levantamos, nos vestimos e saímos de nossa prisão sem grades. Para nossa surpresa, tudo estava em silêncio. Um silêncio profundo e sepulcral. Andamos lentamente cômodo a cômodo daquele lugar e não havia ninguém. Foi na sala de jantar que encontramos. Lá estava ele, com a cabeça jogada sobre o prato de comida, os braços descansados e o corpo totalmente morto. A ambulância chegou. Nosso avô estava morto e eu não sabia como. “Ele foi envenenado”, concluiu o legista. Aquela multidão nos olhou com olhos de condenação. Mas como? Eu não havia feito nada e minha irmão não saiu do meu lado nenhum segundo, ela apenas foi...ela apenas havia ido à cozinha...ela foi à cozinha preparar o jan..tar...Não podia acreditar. Sob meus pés um buraco se abriu para o infinito. Eu estava sendo engolida pela escuridão. Seguraram-me pelo braço e praticamente fui arrastada. Os homens gritavam comigo e exigiam uma explicação pela morte de meu avô. “Eu não sei de nada! Eu não fiz nada”, mas eles não acreditavam. “Foi você! Confesse que matou seu avô”. Não entendia porque estavam me condenando. Minha irmã sumira. Será que a levaram? - Onde está minha irmã? Quero ver minha irmã? Os homens se entreolhavam incrédulos. - Do que está falando, menina? - Minha irmã. Quero ver minha. Por favor, eu não fiz nada. Me deixem ver minha irmã... O mundo é branco. Como se tudo estivesse em paz. Mesmo naquele branco completo minha mente brinca desenhando figuras do meu passado: minha mãe, meu pai, minha irmã, meu avô, uma tarde quente, o canto de um pássaro distante e as coisas de uma vida simples. Será? Será que tive uma vida simples? Não sei se sou a pessoa mais indicada a responder. E apenas sei que vivi, por melhor ou pior que essa vida tenha sido. O branco consome tudo. Agora tudo é muito branco. É branco demais. Eu quero dormir. - Então é isso. - Como assim? – perguntou o delegado. - Ela não o matou. Quem matou o velho foi a irmã gêmea. – afirmou a mulher. - Isso é alguma brincadeira? – falou irritado. - Senhor, não estou brincando. A irmã gêmea granulou o peixe com veneno para rato e deu de comer ao velho. - O que está querendo dizer, mulher. Não existe irmã gêmea. Ela estava sozinha no lugar. Foi criada sozinha. A mãe morreu no parto e o pai faleceu atropelado por um tronco de madeira. A menina foi entregue ao avô como órfã. Não existe outra pessoa. - Na verdade, existe sim. Essa menina sofre de transtorno de personalidade múltipla. Ela acha e acredita que teve uma irmã gêmea. Assumia a postura de outra pessoa e em sua cabeça a irmã era tão real quanto você e eu. Quem matou o velho não foi aquela menina assustada que está na sala nessa exato instante, e sim sua outra personalidade, a irmã gêmea. - Não consigo compreender. - É difícil eu sei. Realmente não é fácil. Mas se pensarmos em tudo que aquela menina passou a coisa fica mais simples de entender: a morte prematura da mãe, o desprezo do pai e sua morte fatídica, o isolamento do mundo e os maus tratos do avô. Ela encontrou na irmã fictícia um refúgio que na sua vida era impossível. Enquanto alguns canalizam o sofrimento nas artes, outros fazendo exercícios, no choro ou mesmo num sentimento como raiva, ela encontrou seu refugio num personagem, talvez porque buscasse, porque tinha necessidade de uma companhia agradável, de ter alguém que a amasse de verdade. O delegado deitou-se na cadeira deixando cair completamente seu corpo gordo. - O que fazemos então, doutora? O que fazemos com a menina? - Realmente não sei. Eu apenas gostaria que ela tivesse paz, junto de sua irmã. O delegado olhou profundamente para a psiquiatra e ficaram assim encarando-se enquanto a menina dormia profundamente.

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